Opinião

Coluna Direito da Família: A divina tragédia do afeto

Dante Aliguieri, poeta florentino, já traduzia a representação do inferno, enquanto purgação de todos os pecados originais, na formação de círculos concêntricos em espiral, com o aprofundamento e alargamento dos círculos conforme a gravidade da culpa a ser expiada. Curiosamente, ao contrário do imaginário popular, para Dante, conforme há aproximação do núcleo, o inferno torna-se cada vez mais gélido. Tal fato talvez se deva à co-relação entre a ausência de afeto e a distância dos sentimentos com a depravação da alma humana.

Na perspectiva pós-moderna, dá-se ênfase à intersubjetividade enquanto formadora do indivíduo, por não ser ele pronto e acabado por uma entidade transcendental, mas um eterno devir na relação com os demais sujeitos. Não há, pois, uma norma fundamental que determine o indivíduo senão o amor. Sem ser piegas, pois a noção de amor romântico desnatura a essência filosófico-política do amor. Amar é responsabilizar-se, na medida da empatia pelas diversidades humanas. Sendo que o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença, a ausência de qualquer afetividade, pois isso implica na impossibilidade formativa do indivíduo.

As consequências disso extrapolam as meras conjecturas poéticas e filosóficas para se entranhar nas normativas jurídicas, visto que o Direito traz o regramento das relações humanas. Parece absurdo pensar no regramento do amor, de forma impositiva, pela letra fria da lei. Contudo, o Direito não se restringe à lei. Ele alcança até mesmo a ética, do ponto de vista racional, a fim de salvaguardar a dignidade humana, revestida de solidez de conteúdo: o valor em si mesmo e o respeito do valor do outro.

Nas relações familiares isso se torna latente, pois é no lar (Lugar de Amor e Respeito) que nasce e se solidifica o conteúdo da dignidade. Assim, as regras jurídicas passaram a limitar a potestade do pater para visar à isonomia entre os entes familiares. A mulher e os filhos, que outrora foram meros objetos das vontades do chefe familiar, passam a ter dignidade a ser reconhecida e protegida, com a ampliação do leque dos direitos, dentre eles o afeto.

É inerente à condição humana o afeto, visto que o ser humano é relacional, constituído pelo relacionamento e pelo reconhecimento derivado daquele. A falta do reconhecimento (enquanto não valorização do outro) oprime, frustra e causa hierarquias. Dar amor não retira a autoridade, não impede a colocação de limites, mas garante o respeito.

Dessa forma, a conduta desviada da ética do respeito para com a dignidade alheia, na medida em que cause danos, é passível de responsabilização. A falta de amor, pelo chamado abandono afetivo, pode ser alvo de sanção pelo Direito. Tal sanção perpassa a reparação de danos, a qual pode ocorrer pelo ressarcimento pecuniário. Não como uma imposição de demonstrar o amor romântico por alguém, mas como uma coação à conduta responsável para com o alter.

Essas disposições geralmente se relacionam aos filhos, relegados à própria sorte na formação de sua personalidade e da sua intersubjetividade, mas não impede a aplicação para com aquele que comunga a vida (cônjuge ou companheiro), diante da exposição vexatória ou do descaso contumaz. A responsabilidade jurídica impõe, pois, o calor da empatia, para que os corações não se congelem no individualismo e egoísmo humano.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas