Sábado, setembro de 1958. O enfermeiro Vicente atravessou toda rua da feira, levando numa cuba um enorme baço. Manezinho, filho de Atanázio, porteiro do hospital, diácono da igreja evangélica, homem sério, temente a Deus e de grande credibilidade na cidade de Palmares, interior de Pernambuco, sofria da chamada barriga d’água A cirurgia para retirada do baço, se impunha como uma medida médica padrão.
Muita gente abordava o enfermeiro Vicente, querendo saber o que levava naquela cuba, com o braço levantado acima da cabeça. É o baço de Manezinho, dizia, Dr. Fenelon operou o menino, mas não garante que ele vá viver. Cirurgia difícil, o baço pesou mais de dois quilos na balança de Amélio, açougueiro, quase no fim da feira. A caminhada de ida e volta, tinha sido acompanhada por uma pequena multidão que já cuidava de espalhar o prodígio.
Semanas depois, na igreja presbiteriana lotada, Atanázio agradecia a Deus a nova vida do filho, agora corado, alegre, sem aquela barriga enorme e como toda criança sadia, dedicando-se com fervor às peraltices convenientes à sua idade.
Deus seja louvado, diziam as pessoas quando ouviam a história do enorme baço agora, de mais de cinco quilos, retirado da barriga de Manezinho. Em Palmares e por toda região, o episódio fez a fama do Dr. Fenelon Arruado, cirurgião milagroso, homem guiado por Deus para fazer milagres na terra.
Operar Manezinho num sábado, mandar pesar o baço na última barraca da feira, tinha sido uma idéia genial.
Famoso em pouco tempo, o médico já fazia, convidado, jornadas cirúrgicas nas cidades da região. Ribeirão nas terças, Gameleira, toda quinta. Por uma estrada vicinal, mais de duas horas de Jeep, toda sexta feira, ia operar em Ipojuca.
Três dias da semana passava fora, nos outros, dedicava-se com fervor quase religioso ao grande o número de consultas e cirurgias no Hospital Regional em Palmares.
Dona Iolanda, sua esposa, moça tímida e plena de recatos, sofria com a ausência do marido. Esquia, muito loura para o tipo feminino daquela região, tinha os olhos verdes e tristes. A casa do médico era vizinha ao hospital.
Dr. Fenelon vivia para o trabalho. Mal cuidava da própria aparência, tinha que cuidar dos outros. Saia cedo, pela manhã. só retornava depois das nove da noite. Às vezes, passava horas assinando fichas médicas, autorizações, faturas. Afinal, era o diretor do hospital e não fosse a dedicação de Dona Valderez, funcionária antiga, solteirona de uns cinqüenta anos, morena, com uma face quase leonina, sabedora dos meandros administrativos e que lhe preparava os documentos para assinar, o hospital parava.
Dr. Fenelon chegava em casa com os cabelos desgrenhados, aparência cansada, barba de três ou quatro dias, pedia um banho morno, que Dona Iolanda lhe preparava, comia um prato de arroz com galinha e caia na cama, logo estava dormindo pesadamente até que o despertador o acordasse às seis da manhã.
Morro de vergonha em ter que falar com pessoas estranhas, inda mais, quando você não está em casa, Fenelon. Reclamava Iolanda, eu me escondo, fecho a casa, mas eles ficam batendo palmas até eu abrir a porta. Uns perguntam sobre remédios, outros, onde você está, gente de fora lhe procura para vender coisas para o hospital. Ah meu Deus, não sei como conversar com as pessoas. Dona Iolanda definhava. Tinha uma vaga lembrança da última vez que o esposo lhe dedicara uma atenção mais íntima.
O moço, um representante de um laboratório, vestia um terno azul marinho bem talhado. Camisa impecavelmente branca com o colarinho gomado. Gravata vermelha de seda brilhante. Tinha um rosto marcante e os cabelos negros, cheios, cobriam-lhe a fronte. O queixo bem formado sugeria uma masculinidade provocante. Iolanda atendeu, relutante como sempre, o que parecia ser mais um indesejável vendedor. Ah, Felenon, onde você está, murmurou. Aquele homem tinha alguma coisa diferente na voz. Falava de modo pausado, o timbre aveludado e um som que impressionava os ouvidos de Iolanda, causando-lhe uma sensação de bem estar. Não prestou atenção ao que o moço dizia. Apenas ouvia, embevecida, aquela voz de sonoridade macia. As mãos tremiam, quando trouxe da cozinha uma xícara de café. Sentiu que seu coração batia descompassado, mas não conseguia entender o que estava se passando no seu juízo. Quando o vendedor despediu-se, tomando-lhe as mãos e beijando-as como se ela fosse uma princesa. Fechou a porta, literalmente desabou na cadeira e passou a sentir uma inquietação nunca experimentada. As pernas tremiam, o coração batia de um jeito estranho. O olhar ficou perdido, dissociado da realidade e por uns momentos que lhe pareceram uma eternidade, viajou para um lugar distante, desconhecido que, segundo os entendidos nos mistérios do amor, se materializa no coração das mulheres apaixonadas.
Ansiava pela volta do vendedor. Ela mesma estranhava o fato de não ter comentado com o marido aquela visita. Não saberia dizer o que o homem queria. Não lembrava o teor da primeira conversa. Seus ouvidos apenas guardavam a voz aveludada do moço e se voz tivesse cor, aquela, seria azul profundo.
O moço voltou. Uma, duas, três e mais vezes. Nunca dissera ao marido das suas visitas mesmo porque, nos últimos tempos, ao abrir a porta para o amante, sofregamente, aos beijos e abraços, desnudava-se desordenadamente, largando pela sala em direção ao quarto, saias, meias, sapatos, blusas, calcinhas. A entrega era total. Saiam do tempo e do espaço para uma realidade somente pressentida pela paixão ardente. Não existia outro mundo senão aquele que viam de olhos fechados. À cada quinze dias, Fenelon saia para operar em Ribeirão, ficava fora o dia todo. O moço aparecia.
Os namorados pensam que o mundo é cego, disse Mário Pimentão, motorista da ambulância, tido e havido como pessoa que sabia das coisas que ninguém percebia. O comentário ferino, foi dito para Dona Valderez exatamente no momento em que o moço, muito bem arrumado, saía da casa do Dr. Fenelon, despedindo-se da Dona Iolanda, com toda cerimônia.
Aquele pedaço de papel deixara Fenelon com um olhar distante e o coração apertado. Naquele dia, operou mecanicamente. Não foi capaz de falar nada a não ser o necessário. Tinha um semblante diferente. Estava sem alma. Mesmo assim, no hospital, quase ninguém percebeu a mudança. Somente Dona Valderez sabia o que estava se passando. Ela mesma escrevera o bilhete e colocara sobre sua mesa. ” Quando o senhor viaja, o urso entra na sua casa”. Os pensamentos do Dr. Fenelon vagavam agora por um mundo sombrio. Ao chegar em casa queixou-se de uma forte dor de cabeça e após tomar uns comprimidos, caiu na cama e dormiu pesadamente. Iolanda assim pensou; ainda bem que dormiu logo. Amanhã cedo ele vai passar o dia todo operando em Ribeirão e só voltará, depois das dez da noite.
Na tarde do dia seguinte, chovia. O tempo fechado espantou mais cedo a luz do dia. A chuva também afugentava as pessoas das ruas, sempre emporcalhadas por uma mistura de lama e cocô de cavalos. Iolanda e o moço amavam-se ruidosamente, vivendo mais umas horas naquele universo distante, somente permitido aos viajores apaixonados.
Não pressentiram nada, quando o moço arregalou os olhos. O corpo tremia, não sentia mais o pênis. O grito de Iolanda ao ver o marido com um revolver numa mão e uma espingarda na outra teve uma sonoridade estranha. Fora, fora, gritava Fenelon enfurecido. Fora da minha casa! Apontando-lhes as armas, encostando o cano da espingarda em suas costas e nádegas.
Aos gritos, vociferando maldições expulsou-os do quarto em direção à porta da frente. A chuva caia fina, quase uma neblina. Nem o anjo Gabriel, cumprindo a determinação do Senhor teria sido tão cruel. Os primeiros passantes, a princípio, não entendiam o que estavam vendo. Dr. Fenelon conclamava, como um arauto ensandecido, a que toda Palmares participasse daquele drama. Iolanda e o moço estavam completamente nus. Ela muito branca, pés delicados mal podia equilibrar-se na rua escorregadia e emporcalhada, pois tentava a todo custo esconder sua nudez e ainda tinha que caminhar tocada pelo cano da espingarda. O moço simplesmente tremia, não dizia nada, curvado, sem ter onde colocar as mãos, despido, constrangido de participar daquele desfile surrealista.
Ouviu-se um disparo do revolver. O tiro fez muita gente acudir à rua. Iolanda sentia a morte rondando. Aliás, estava tão perplexa que nem conseguia organizar seus pensamentos e desejar a morte. O médico atirou novamente. Povo de Palmares, gritava a plenos pulmões, veja como um homem de bem lava a sua honra. Outro tiro para cima e os dois amantes, encostando-se um no outro, tentando como podiam cobrir o ventre, caminhavam com dificuldade sobre as pedras molhadas como dois condenados em direção ao patíbulo. Os gritos do Dr. Fenelon atraiam mais gente à medida em o trio caminhava pelo meio da rua em direção à Praça do Jacaré, ladeira acima. O logradouro tinha um grande tanque redondo onde três ou quatro jacarés capturados no rio Ipojuca, viviam preguiçosamente. A igrejinha ficava no alto e a escadaria terminava num pequeno plano que fazia, naquela ocasião, as vezes de um palco digno da imensidão daquela tragédia.
O moço e Iolanda, pálidos, tremiam de frio e de medo, encostados na porta da igreja tendo duas armas apontadas para si. Fenelon mais à frente, como um mestre de cerimônias, anunciava aos berros à pequena multidão as razões pelas quais mataria os dois na porta da igreja. Mais um tiro para cima, a multidão tremeu, Iolanda e o moço cobertos por toda vergonha do mundo, não ousavam encarar ninguém.
Fenelon bradava. Venham todos, venham ver como um homem de bem e honrado faz Justiça a esses que difamaram seu lar ! Romildo, dono do hotel tentou falar alguma coisa mas recebeu de volta o olhar furioso do médico. Eu tenho o direito de lavar a minha honra com sangue, gritou Fenelon. Arclébio, do posto de gasolina quis interferir mas a mulher o segurou, mandando-o calar-se. Para ela, qualquer interferência que fizesse findar aquele drama seria desastrosa para suas pretensões mexeriqueiras, assim, era melhor que aquele episódio tivesse mesmo um trágico final.
Algumas mulheres choravam temendo pelo desfecho daquela tragédia. Foi quando, Dona Nulita, mulher do juiz, segurando um lençol aproximou-se resoluta e gritou. Fenelon, você não vai estragar sua vida, você não vai atirar em ninguém, primeiro precisa me matar e isso você não vai fazer. Rapidamente postou-se entre o médico e a mulher despida, abraçando-a e cobrindo-a com o lençol. No mesmo instante, o cabo Adailton segurou Fenelon, ainda atônito com a perda de controle da situação e gritou para o moço. Se dana daqui homem, desaparece. Como por encanto, o moço sumiu pela lateral da igreja enquanto Dona Nulita, pelo outro lado, encurvada sobre Iolanda, a conduzia para sua casa, deixando o Dr. Fenelon, ainda seguro pelo cabo Adailton, gritando as últimas ameaças aos dois pecadores que difamaram o seu lar e destroçaram sua vida.
Durante mais de dez anos, Palmares conheceu muitas versões dessa história. O certo é que o médico largou a mulher e mudou-se da cidade.
Sábado, 17 de Abril de 1973, quinze anos depois. Dez horas da manhã uma Rural Willys, cheia de malas no bagageiro com um homem e uma mulher, faz uma volta na praça e sobe a rampa de entrada do Hospital Regional de Palmares.
Doutor Fenelon, Dona Iolanda !!!
Mário Pimentão, reconhecera o casal.
Autor – Dr. Lucio Araripe – médico psiquiatra. CRM PR 13246