Estava sentado na esquina, embaixo da árvore. Pensava no inconstante e vago passeio da vida. No ar pairava um gosto de terra e de esperma. Um pássaro cantou ao longe e me senti seu companheiro. Tentei então vagar pelo pensamento alado do pássaro no alto da árvore. Havia um ruído de gente no fim da rua. Quem poderia afirmar se estavam vivos?
Estiquei as pernas para evitar as contrações espasmódicas e meu corpo se retesou como se fosse atingido por um raio. Ou será que foi? Difícil dizer agora de onde veio o impulso, o fato é que os músculos obedeceram. Estiquei os braços para cima de encontro ao céu e tentei tocá-lo. O que pude sentir foi um bafo. Seria o bafo de Deus?
Era o entardecer de mais um dia. Deslizava no ar o encanto e a maciez do dourado da tarde. Era o crepúsculo inundando minha alma, queimando os nervos e amortecendo a língua. Parecia que era o brilho dos olhos de todos os mortos me alcançando, e era impossível fugir. Mas também para que fugir?
O pássaro ciscava no galho da árvore, a brisa vagava e adormecia a pele. O ofuscante mago que dominava o dia e o levava de encontro à noite era lentamente fustigado pelas raias da escuridão que se arrastava vindo do infinito. E era preciso acalentar o formigamento do desconhecido que vinha, e eu tinha muitos sonhos…
Acima das encostas e dos ventos um jato rasgava o céu iluminado pelo sol agonizante e deixava seu rastro por alguns momentos, depois desaparecia como os pensamentos vãos. Um inseto sobrevoava minha cabeça e me fazia companhia, como se fizesse parte do meu corpo e da minha alma.
Um cheiro de ovo frito avançava pela rua e me lembrava da fome. Um cachorro pairava deitado no meio da rua, e às vezes levantava a cabeça e me olhava tristemente. Quem havia posto tamanha melancolia nesses olhos marejados pela dor? Parece que olhava através de mim, e chorava lágrimas escassas de lamento e de compreensão. Quem seria o dono daquele cão? E ele pensaria o mesmo de mim???
Era pastosa a sensação de eternidade que desprendia da tarde. Quantas tardes ainda haveria de presenciar? Suportaria mais uma? No peito queimava o desejo de sobreviver e romper o futuro. Quem tem a chave para o amanhã?
Sinto novamente o olhar do cão. Na árvore o pássaro também me observa. Mas o jato se foi, e sua fumaça se diluiu no céu. Olho para as casas e não vejo ninguém, apenas sinto o cheiro de comida que emana de uma delas. Há um choro de bebê que vem em alguns momentos, mas é distante, vago, como se fosse uma súplica pela vida.
Tento então me concentrar no meu coração. Sinto algo explodindo no peito como se fossem bombas cadenciadas, em ritmo de guerra. Tento perceber o seu desejo, mas é indecifrável. Apenas implora algo, mas quem saberá dizê-lo?
Revejo meus pensamentos de criança, quando eu não tinha pecados. Eram cambaleantes e vagos. Mas havia o sonho, e esse tinha gosto de algodão-doce. Quem comeu o meu sonho?
Algumas lacunas começam a se formar no horizonte da minha quietude. Não consigo organizar o que espero, o que quero, o que imploro. Só consigo notar o quebra-cabeça sendo chutado e espalhado pelo chão, as peças se procurando no escuro, náufragas…
Agora desliza um canto morno e sonhador de uma lavadeira. Parece que desenha com suas mãos a ternura e o encanto da doação. Seus calos se encontram e se roçam indolores, na umidade espumosa das roupas pobres.
Algo no ar forma um rodopio, como um princípio de tornado. Eram os pensamentos que dançavam agonizantes tentando se agarrar em algo. Mas a tarde estava sozinha, não havia gente, não havia ainda estrela, e a noite estava por vir. Foi assim que percebi o quão vão e fugaz é a vida.
Súbito ouvi o tiro. Pude sentir o último olhar do pássaro antes que o projétil de chumbinho atravessasse seu peito. Parece que o tempo parou, e não havia mais o que esperar. Um ruído do seu corpinho que bate no chão e uma pena que veio girando em circunvoluções, flutuando mansamente sobre mim. Um pouco de sangue ainda quente pairava na pena e se arroxeava lentamente, como a tarde que caminhava para a noite. Os meninos pegaram seu corpinho e levaram fazendo festa. Foi o primeiro assassinato que assisti. E agora muitos anos depois ainda vejo no dourado da tarde o sangue do pássaro permeado aos brilhos de chumbo que aguarda a noite chegar. E mais no alto onde o dourado não consegue chegar parece que vejo um vôo solitário. É o vôo da liberdade que todos aguardamos pacientemente…
Dr. Luis Alberto Peres – Médico Nefrologista – CRM-PR 11274