Além da sombra do terrorismo, a Eurocopa começa nesta sexta-feira, na França, em uma semana marcada por greves, inundações após fortes chuvas e críticas de todos os lados até do atacante sueco Zlatan Ibrahimovic, que deixou o PSG disparadas ao presidente François Hollande. Favorita ao título, a seleção francesa que estreia nesta sexta, às 16h, contra a Romênia também está longe de ser um poço de tranquilidade.
No cenário ideal, em um sentido puramente esportivo, os jogadores estariam blindados das tensões internas no país. Mas a história recente do time nacional, apelidado de Les Bleus, é marcada justamente por turbulências. E muitas, como a recente exclusão do atacante Karim Benzema, campeão europeu pelo Real Madrid, refletem cicatrizes políticas e sociais que vão além do esporte.
Faz pelo menos duas semanas que a França discute dia sim, outro também o quanto a ascendência de Benzema, cujos pais vieram do norte da África, influenciou sua não convocação pelo técnico Didier Deschamps. O atacante argumentou, em entrevista ao Marca, que Deschamps havia cedido à parte racista do país o polêmico Eric Cantona, ex-jogador da seleção e do Manchester United, foi mais longe e acusou o próprio treinador de racismo.
O treinador fez suas escolhas. Hoje estou aqui, muitos não estão minimizou o lateral-direito Sagna, um dos mais experientes da seleção. Eu sou negro, alguns sao magrebinos (originários do norte da África), outros são franceses e alguns poderiam ser chineses, talvez. Não acho que há racismo. É estúpido que esses comentários apareçam antes da Euro.
Benzema não vinha sendo convocado desde outubro, quando foi acusado de chantagear o meia Valbuena por conta de um vídeo íntimo. O atacante do Real Madrid chegou a ser proibido judicialmente de ter contato com o companheiro de seleção, mas a restrição foi derrubada em março. Mesmo assim, Deschamps e a federação francesa optaram por não levá-lo à Euro Valbuena também ficou de fora, após fraca temporada no Lyon.
Ainda que as pessoas considerem Benzema um dos melhores atacantes do mundo, elas estão saturadas com seus problemas. Uma pesquisa recente mostra que apenas 9% dos franceses realmente querem Benzema na seleção. Em novembro de 2015, eram 22% ilustra Boris Helleu, pesquisador da Universidade de Caen Basse-Normandie na área de marketing esportivo.
Helleu se refere a uma pesquisa de opinião divulgada pelo instituto francês BVA na última semana. No mesmo levantamento, pouco mais de metade das pessoas (52%) se definiram como inquietas em relação à segurança da Eurocopa. A memória do atentado que atingiu o Stade de France em novembro, organizado pelo grupo terrorista Estado Islâmico, e o posicionamento hesitante do governo francês diante da onda de refugiados vindos da África e do Oriente Médio deixaram o país em um estado permanente de tensão social e política, além de dar combustível para a xenofobia.
POLÊMICAS EM SÉRIE NA SELEÇÃO
Quando o assunto é futebol, contudo, essas questões não parecem incomodar tanto os franceses quanto os episódios controversos protagonizados por jogadores na seleção.
Se as polêmicas envolvendo Benzema sacodem o país, a seleção pareceu a ponto de implodir na Copa do Mundo de 2010, quando o centroavante Anelka foi expulso da concentração após xingar o então treinador Raymond Domenech e os jogadores fizeram uma pequena greve, recusando-se a treinar em solidariedade ao companheiro. A França foi eliminada na primeira fase.
As últimas duas Eurocopas também frustraram os franceses. Em 2008, queda na primeira fase. Em 2012, a eliminação nas quartas de final, diante da Espanha, foi marcada por reações explosivas de jogadores como Nasri e Menez, que acabaram suspensos pela federação. Benzema e Ribèry foram julgados em 2014, meses antes da Copa do Mundo, por pagarem uma menor de idade em troca de sexo. Ambos acabaram inocentados no tribunal, mas a imagem da seleção ficou desgastada.
Os franceses não estão felizes com a forma como os jogadores se comportam. Eles ganham muito dinheiro e alguns dão a impressão de estarem acima da lei resume Thierry Taze-Bernard, jornalista da France TV Sport.
GRIEZMANN, CANDIDATO A ÍDOLO
A ausência de um jogador do porte de Benzema, por um lado, parece aumentar a pressão sobre os atacantes da seleção francesa alguns jovens, como Martial (20 anos) e Coman (19), outros experientes, como Gignac (30) e Giroud (29). Este último, por sinal, foi escolhido substituto de Benzema e acabou vaiado no amistoso contra Camarões, na última semana, apesar de ter balançado as redes.
Por outro lado, o vazio deixado por Benzema projeta alguns candidatos a preenchê-lo. Um deles, segundo Boris Helleu, pode ser o volante N'Golo Kanté, um dos principais jogadores do Leicester, sensação do último Campeonato Inglês.
Mas o principal candidato a ídolo parece ser outro atacante: Antoine Griezmann, vice-campeão europeu pelo Atlético de Madrid nesta temporada, derrotado na final da Liga dos Campeões pelo Real Madrid de Benzema. O jornalista Thierry Taze-Bernard cita as boas atuações de Griezmann desde a Copa do Mundo de 2014, torneio que serviu para apresentar seu potencial à França.
Griezmann apareceu como um rapaz muito simples, humilde, sem exigir que jogasse de um jeito ou de outro. As pessoas gostam desse tipo de jogador, em oposição a Ribèry, Nasri ou Benzema, que parecem não se esforçar em certos momentos. Griezmann parece fazer seu trabalho sem falar muito. Os franceses tornaram-se altamente resistentes a esportistas que aparecem muito por polêmicas na vida pessoal destaca.
Apesar da imagem de bom moço, o próprio Griezmann já se envolveu em polêmicas extra-campo: durante a Eurocopa sub-21, em 2012, ele e outros quatro jogadores fugiram da concentração para uma noitada e acabaram suspensos por um ano da seleção. Ainda assim, o pesquisador Boris Helleu vê o atacante querido pelos torcedores, e lembra um momento emblemático: o choro no gramado do Maracanã após a eliminação diante da Alemanha, nas quartas de final da última Copa. Uma cena que contrasta com o desinteresse da seleção no Mundial de 2010, na África do Sul.
A Copa do Mundo de 2010 ainda está, de alguma forma, na mente dos franceses. Vem sendo muito difícil para a seleção recuperar o amor e a devoção dos franceses avalia Helleu.