Opinião

Os refugiados do SUS e a judicialização da saúde

Opinião de José Luiz de Souza Moraes

Em estudo recente realizado a pedido do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), foi constatado o aumento de 130% nas ações da chamada judicialização da saúde. Como sempre, números isoladamente não respondem a muitas questões, é preciso analisar alguns fatos para termos a real dimensão do que eles representam. De plano, poderíamos apontar a crescente busca ao Judiciário no maior acesso à justiça e na maior consciência dos cidadãos de seus direitos, mas será que é só isso?

A Constituição da República de 1988 trouxe avanços sociais e jurídicos profundos. O artigo 196 elevou o direito à saúde a um patamar até então inédito e o considerou um dever do Estado. Nossa constituição também criou o SUS (Sistema Único de Saúde) que é um dos melhores, mais amplos e importantes programas sociais do mundo, atingindo a totalidade da população brasileira, sem a exigência de contraprestações, a um universo de mais de 200 milhões de pessoas.

O constituinte de 1988, prevendo as ameaças que se avizinhavam no futuro (que já chegou), marcou essas conquistas com a imutabilidade das cláusulas pétreas, impedindo que fossem reduzidas ou extintas pelas futuras gerações inclusive por meio de emendas à constituição, Oxalá!

Essa farta previsão de direitos não excluiu a possibilidade de os particulares prestarem serviços de saúde. De acordo com a Lei 9.656, os planos devem prestar de forma continuada, por prazo indeterminado e sem limite financeiro, a assistência à saúde por meio de profissionais ou serviços de saúde. A lei que completou seu 20º aniversário já passou por várias modificações e pode passar por outras. Para a fiscalização do correto cumprimento da lei, foi criada a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que teria a finalidade de regulamentar e fiscalizar o setor e, principalmente, proteger os consumidores.

Passados 30 anos da Constituição e 20 da criação da ANS, qual cenário podemos encontrar no Brasil? Certamente caminhamos muito e devemos continuar no caminho, mas também é certo que não estamos onde sonhava o constituinte dos anos 80.

Desde 2014 o número de pessoas com planos de saúde vem diminuindo consideravelmente, a ponto de transformar esse serviço no terceiro maior sonho de consumo da população brasileira, perdendo apenas para educação e casa própria.

A razão da diminuição é de fácil descoberta: a perda do emprego de mais de 14 milhões de brasileiros nos últimos anos.

Esses 14 milhões de pessoas deixaram de ter acesso a um serviço pago que, em tese, deveria trazer mais agilidade e conforto do que os serviços públicos.

Se por um lado temos mais usuários, por outro temos menos recursos. A mesma crise que retirou os empregos diminuiu a arrecadação de impostos e com eles os investimentos, criando um círculo vicioso no qual o maior prejudicado é o cidadão.

Esses “novos usuários”, em regra, possuem um grau muito mais elevado de exigência de qualidade e agilidade dos serviços e maior noção de seus direitos, fazendo com que busquem no Judiciário obter primazia dos seus atendimentos e tratamentos, causando um grande aumento das chamadas ações “fura-fila” que visam passar na frente dos que já aguardavam os mesmos serviços por meio de liminares judiciais, bem como tratamentos e medicamentos que não fazem parte dos chamados protocolos clínicos padronizados disponíveis a todos os usuários do SUS, portanto, há maior busca pelo diferente, pelo moderno, pela marca e pelo mais caro.

Em outra ponta, aqueles que permaneceram com seus planos de saúde não raro se queixam de negativas de tratamentos e de falta de vagas nas redes privadas. Problema ainda mais comum e notório são os aumentos das mensalidades muito acima dos índices de inflação e dos reajustes salariais. Buscam eles o Judiciário para obter tratamentos e revisões contratuais que por vezes se mostram abusivas.

Nós perguntaremos, e a ANS? Ela foi criada para a regulação de planos individuais, abundantes à época de sua criação, mas raríssimos hoje em dia. Tal fato transformou o mercado da saúde suplementar, fazendo com que operadoras e seguradoras buscassem nos planos coletivos um oásis de não regulamentação de preços, sendo organizados por poucas empresas de administração e comercialização que dominam o mercado e estabelecem suas próprias políticas tarifárias, relegando a ANS aos minguantes planos individuais e à fiscalização de funcionamento das empresas submetidas à sua competência regulatória. Uma vez mais sofre o cidadão, que busca no Judiciário o controle contra a abusividade que a ANS não regula.

E qual a solução? A criação de empregos, mas só? Certamente não. E a resposta está no SUS, que nasceu para ser universal e gratuito e somente nele podemos encontrar a solução desejada desde o início pelo constituinte, a melhoria da saúde de toda a população.

O SUS não é aquilo que vemos, com pessoas morrendo pelos corredores e portas de hospitais superlotados; é isso também, mas não só.

O SUS é a única porta para serviços de excelência e referência mundial em qualidade e alcance como o programa de transplantes, as campanhas nacionais de vacinação e o tratamento do HIV/Aids. Existe um SUS de excelência que é propositalmente esquecido por muitos. Mas há um outro lado, além das pessoas em macas e da superlotação. Estamos na 112ª posição em lista de 200 países com relação a saneamento básico, um dos piores no continente americano. Pela primeira vez desde 1990 o índice de mortalidade infantil aumentou em 4,8% em relação a 2015. Sofremos de uma grave crise de zika, febre amarela e acabamos de perder o status de país livre do sarampo. Sim, esse é o SUS das mazelas.

Quando o sistema falha, uma parcela da população, justamente a que possui maior poder aquisitivo e discernimento a respeito dos seus direitos, busca o Judiciário para a obtenção de seus tratamentos, fazendo com que os mais ricos abocanhem parte cada vez maior dos recursos, já insuficientes, destinados à saúde de toda população. Isso condena os mais pobres a serviços cada vez mais precários, transformando o SUS, que nasceu para ser universal e igualitário, em um sistema com duas portas, uma VIP e outra de excluídos.

Sem ampliação e melhoria do SUS, com mais e melhores investimentos públicos especialmente na atenção básica, a distância entre essas duas portas será cada vez mais abismal.

José Luiz Souza de Moraes é procurador do Estado de São Paulo atuante na Coordenadoria Judicial de Saúde Pública