Caso Cinderela vivesse no Brasil da década de 1990, a legislação lhe daria um rumo completamente diferente, pelo menos teoricamente. Isso porque, sendo filha do falecido, ainda que de união extraconjugal, seria considerada herdeira, em igualdade de condições com as irmãs, de modo que a casa que cuidava com tanto esmero também era sua, por direito, em seu respectivo quinhão. E mais, pasme, poderia ter cobrado alugueres das demais inquilinas… Isso decorre do fato da igualdade de condições entre irmãos, independentemente de sua origem, para as questões afetivas, patrimoniais e sucessórias. Ela não precisava de príncipe, mas de advogado/a!
A dignidade ganhou novas proporções na segunda metade do século passado, diante da ascensão do Estado Democrático de Direito, não podendo ser restringida ou alienada, por ser inerente à condição humana e por expressar as premissas antropológico-culturais em cada tempo e lugar, conforme lecionou Pico dela Miroandola, há alguns séculos. Sua teorização destina-se, atualmente, à proteção dos mais vulneráveis.
Assim, com a Constituição Federal de 1988, assentou-se a necessidade de proteção das crianças e adolescentes, em vista de sua condição de vulnerabilidade na constituição de sua personalidade, cabendo ao Estado e à sociedade sua proteção. Tal premissa foi consubstanciada no Estatuto da Criança e do Adolescente no início da década de 1990, de modo que deve haver prioridade na proteção dos infantes, especialmente por parte dos pais. Aliás, eles detêm o chamado “poder familiar”, o qual, ao contrário do que se pensa enquanto poder absoluto dos pais sobre os filhos menores, é um complexo de responsabilidade.
Na ausência deles, a responsabilidade remanesce com o Estado e com a sociedade, mas nestes não se vislumbra papel especial: o do afeto, de modo que continua sendo necessário algum responsável imediato a todas as necessidades do menor. Surge, então, a família substituta, sem conceito legal definido, mas que decorre de guarda, tutela ou adoção. Esta família tem o importante escopo de substituir os pais em suas responsabilidades, inclusive afetivas, almejando o melhor interesse do menor. Dá-se preferência à chamada família extensa (tios, avós, primos), pois geralmente estão vinculados pela afinidade e pela afetividade. Preferência e não exclusividade, afinal não é incomum famílias que transforme o órfão em “gata borralheira” ou sujeito de segunda estirpe.
Os órfãos ou aqueles que perderam seus pais por decisão judicial poderão ser dispostos, portanto, sob a guarda de alguém. Essa guarda não se confunde com o direito de convivência em caso de divórcio dos pais, visto ser a regularização da situação de “posse” do menor com o fito da garantir a prática de atos necessários ao cumprimento das obrigações legais, sendo temporária e efêmera.
Alguns podem ser colocados sob tutela de pessoa idônea (que pode ser indicada pelos pais, por documento autêntico), nomeada pelo juiz, que além da guarda terá responsabilidade sobre a gestão patrimonial do menor. Esta não se confunde com a curatela, enquanto instituto de proteção voltado aos maiores incapazes, por situação pontual ou duradoura.
Ambos os institutos mencionados não tornam pais os guardiães ou tutores. Tais pessoas são responsáveis pelo menor, sem a criação de vínculo de filiação, de modo que qualquer pessoa capaz e idônea possa exercer tais múnus públicos. A adoção, todavia, cria relação jurídica de filiação, independente de laços sanguíneos, por ato de vontade. Dessa forma, algumas pessoas são impedidas de adotar: aquelas que tem outro vínculo familiar próximo, quais sejam os ascendentes e irmãos.
Com a adoção, então, surge novo poder familiar, equivalente ao derivado de vínculo biológico, pela vedação constitucional à discriminação, com todos os direitos e deveres inerentes. Essa situação jurídica, certamente, deve melhor atender aos interesses do menor, devendo se encaixar à criança ou adolescente como o sapato se encaixa no pé da Cinderela, na busca do felizes para sempre…
Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas