O vestiário do Pacaembu estava vazio. No campo para o aquecimento, os jogadores do Flamengo deixaram seus uniformes de jogo preparados para a partida que vinha a seguir. Entre camisas, meiões, calções e chuteiras, um kit tinha uma peça a mais. Uma camisa branca, com a foto de um jovem ao centro e os versos de uma música: “Se eu fecho os olhos, minha mente desenha você. Tapo os ouvidos, mas consigo escutar sua voz. Só de pensar que nunca mais eu vou te ver. Dói, dói, dói…”
Antes de vestir-se com o uniforme de jogo, o goleiro Bruno coloca a camisa. É a forma que encontrou para homenagear o amigo Rykelmo, que também era conhecido como Bolívia. Nascido em 2002, o volante provavelmente estaria no time que hoje disputa a final do Campeonato Brasileiro Sub-17. Em fevereiro deste ano, foi uma das dez vítimas fatais do incêndio que atingiu o Ninho do Urubu.
Na partida de ida contra o Corinthians, vencida por 4 a 3, Bruno decidiu homenagear Rykelmo. Na semifinal, contra o São Paulo, foi a vez de lembrar de Bernardo Pisetta. Companheiro de quarto dos dois, o goleiro estava de férias em São Gonçalo do Pará, no interior de Minas Gerais, quando perdeu os amigos. Mas a memória dos que se foram ainda vive forte nele.
– Jogamos pelos nossos amigos. Não só se conquistarmos o título (do Brasileiro Sub-17). Fazemos cada treino e cada partida por eles – disse o goleiro.
Entre as vítimas, Rykelmo era o único que tinha a idade ideal para fazer parte desse elenco. O time do Flamengo reúne atletas de 17 e 16 anos e costuma dar mais espaço aos mais velhos. À exceção do volante, os jovens nasceram em 2003 e 2004 e pertenciam à geração seguinte, basicamente. Um dos primeiros a receber o goleiro quando ele chegou ao Flamengo, em 2017, Bolívia era um dos melhores amigos de Bruno.
A relação com Bernardo, por sua vez, era diferente. Dois anos mais velho, o companheiro de posição era uma espécie de responsável por ele dentro do elenco. Tanto que conquistou a confiança do pai de Bernardo.
– Sempre quando eu ia sair para algum lugar, para a missa, esses negócios, o pai dele perguntava para mim como ia ser, quem ia, até que deixava. E o Bernardo meio que ficava na minha responsabilidade, porque era dois anos mais novo do que eu – contou Bruno em entrevista à TV Globo.
Apesar da diferença de idade, quase todos conviveram nos meses anteriores ao incêndio. Não é à toa que a memória dos amigos surge o tempo todo. Mais do que isso, serve como uma lição aos jovens do Flamengo. Após a vitória diante do Corinthians, quando perguntado de onde veio a força para a virada (o Fla perdia por 3 a 1), Daniel Cabral lembrou dos antigos companheiros. O volante que passou a levar o nome de Rykelmo na chuteira, ressaltou o quanto aquele episódio ainda mexe com os jogadores.
– O Flamengo passou por um momento difícil no começo do ano. Acho que o mínimo que a gente pode dar é nossa superação, assim como a gente vem fazendo durante todo ano. No jogo também, acho que a palavra que conduz o time é a superação – lembrou, ainda na zona mista do Pacaembu.
Desde o início desta temporada, a tragédia no Ninho do Urubu tem sido lembrada pelos jogadores. Na primeira partida desde o incêndio, o Flamengo derrotou o Bangu por 2 a 0, pelo Campeonato Carioca. Autor de um dos gols, o meia Lázaro se ajoelhou, beijou o escudo rubro-negro e apontou para os céus, dedicando o gol e a vitória aos antigos companheiros.
É impossível prever o resultado da final deste sábado. Mas uma certeza os jogadores do Flamengo têm: há muito mais em jogo do que apenas uma partida de futebol. E, onde quer que vão, terão dez anjos da guarda zelando pelos eternos amigos, como disse Bruno:
– Se tudo der certo, no sábado será uma linda homenagem para eles, que estão nos vendo lá de cima.
Fonte: CBF